sábado, 30 de agosto de 2008

(2008/5) De estradas, cidades, leituras e estranhamento

1. É como era antigamente, e eventualmente, ainda o é - em alguns lugares. Você sai de sua cidade, de carro ou trem, e a estrada lambe a terra com uma língua estendida entre serras, curvas, verde e vazio. O tempo passa, passa, sua cidade fica cada vez mais longe, mais longe, até que voltar já é mais custoso do que seguir em frente - e você segue. E você chega.

2. Distante, assim, de sua cidade, cruzando caminhos longos e demorados, você foi vendo a paisagem mudar, as árvores, de cor, de tamanho, as folhas, a cor da terra, a ondulação da paisagem, ora tem morro, ora, não, o céu, azul, de nuvens, azul, sem nuvens, gente, bicicletas, automóveis, carros, trem, passarinhos, pássaros, aves, boi, até galinhas baldias. Lá longe você avista a cidadezinha para onde está indo, e já sente o estranhamento, a curiosidade, a excitação - a alegria, mesmo. Puxa, há oito anos que não tiro férias...

3. Você chega, então, na cidade. Desce do carro. Olha tudo com olhos de primeira vez, cada detalhe, as casas, as cercas, as pessoas, as plantas, os cães, as vendas, as pedras, os postes, as placas, o café, o sol. Nada é igual, tudo é estranho. O Sol é o mesmo, mas não é. Nunca o viu antes. Não esse. Aí.

4. Mas pode ser que nada disso aconteça. Pode ser que você resida em uma metrópole dessas modernas, como Rio de Janeiro, São Paulo, México. Você, então, sai de casa, e, por mais que ande, e ande, e ande, seja a pé, de carro, de trem, de metrô, de ônibus, será sempre a mesma paisagem, as mesmas caras, as mesmas coisas. Nenhum estranhamento - salvo algum medo da violência diária - um gris de viadutos e asfalto cinza.

5. Como um organismo em metástase constante, a cidade espraiou-se, estendeu seu centro em todas as direções, e cobriu tudo - você nem vê mais terra! No seu caminho, a cidade foi engolindo tudo à sua volta - as antigas vilas, os antigos bairros. Engordou, morbidamente. É megalomaníaca. E ainda quer mais, vai comer mais, casa e gente. Nunca mais haverá, aí, estranhamento. Só hábito.

6. Assim é ler. E eu falo, especialmente, de ler textos antigos, particularmente, os da tradição. A Grande Cidade Tradição tem cem mil hectares - só no centro! Engoliu tudo, todos, tempo e textos. Aí, ler é repetir os gestos de todos os dias, as alegrias de todos os dias, as tristezas, também, ver e rever cem vezes a mesma coisa, a mesma idéia, até estar tão gorda delas, que nunca mais verá outra coisa - só ela, a Grande Cidade Tradição.´É como um olho de Dali, saltado da órbita, pendurado por um fio, e voltado para si - só para si.

7. Para ler textos de mil anos, dois mil, três, é preciso sair da cidade, tomar o trem, e dormir, deixar que ele percorra trilhos de séculos, e dormir, e despertar, somente, muito mais tarde, para começar a ver a paisagem mudando, as cores, as coisas, os corpos, as caras. Como fora na primeira viagem, parar, quando lá chegar, e, com entusiasmo, louvar o passado, acariciar-lhe as faces esquecidas - ah, sim, a Tradição não lembra mais nada do passado, porque engoliu-o, como as grandes metrópoles, as vilas. Mas, lá, pulula a vida, verdejam os pastos.

8. É, agora, tendo aí chegado, gastar tempo olhando cada palavra, ops, cada casa, cada fogo de lenha, cada sintaxe, epa, cada festa e batalha, cada idiomatismo, opa, cada costume e cultura. Se, de repente, suspeitar que há alguma coisa de familiar, é sacudir a cabeça, esfregar os olhos, que é ilusão - nossa mente nos pregando uma peça, moradores de metrópoles, nós, especialistas em engolir tudo, de nivelar todos. Não é possível senso de habitualidade, aí - só estranhamento, profundo estranhamento.

9. Não é necessário que queiramos ficar aí. Descobrimos, há pouco, que saímos de dentro de criaturas rastejantes, saltamos para árvores e grutas, e, agora, cá estamos - e quem de nós quer voltar? Igualmente, saber que saímos dessas vilas de milênios, de costumes tão estranhos, de verdades tão suas, de mitos tão distantes, não deve significar querer ficar aí, voltar para aí - significa saber que eles foram o que foram, e que nossa tradição, em nome de poéticas perorações, não pode, é crime!, reduzi-los à nossa imagem - o ogro de Bloch morreria de fome, assim, porque isso não é carne humana, é pó de dupla-morte - morte física, e morte mnemônica. A tradição, ah, quantas vezes não faz dos "moribundos" nossos meros cavalos, rindo-se, porque sabe que, amanhã, os cavalos seremos nós.

10. Deixar a tradição seguir seu rumo - é ela que nos leva a viajar assim, tão atentos, agora, não? Trazer de volta, à vida, carne e corpos enterrados no papel das liturgias. Vozes apagadas, distorcidas, mais que isso, adulteradas, a dizerem o que nunca disseram, a fazer andar por trilhas que nunca abriram pessoas que nunca pretenderam dominar. Libertar-nos. Libertá-los. Ler. Mas fora da cidade Tradição, nos solavancos do trem História e Memória.

Osvaldo Luiz Ribeiro

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