quarta-feira, 17 de setembro de 2008

(2008/9) Zuck denuncia Justino, Ireneu e Tertuliano

1. Quando li Zuck afirmar que Justino, Ireneu e Tertuliano, os fundadores do modelo milenar de interpretação cristã das Escrituras, teriam sido, ainda que "sem saber", os responsáveis pela implementação do princípio de tradição e autoridade na História da Igreja, achei que Zuck estava tendo um surto de criticismo, e que se esgarçava sua perspectiva confessional.

2. Roy B. Zuck é autor do livro A Interpretação da Bíblia - meios de descobrir a verdade da Bíblia, publicado pela Edições Vida Nova. Na p. 40, ele declara: "sem saber, esse apologistas (Justino, Ireneu e Tertuliano) acabaram abrindo caminho para que a tradição da igreja ganhasse maior autoridade, e essa perpectiva predominou durante séculos na Idade Média".

3. Bem, Zuck. Sim. E não.

4. Sim. Quando, em seqüência, construíram as bases formais de suas comunidades lidarem com as Escrituras, esses três "apologistas" estabeleceram as bases do modo como TODAS as igrejas, desde então, e acentuadamente após Nicéia, operaram a interpretação bíblica. Justino estabeleceu formalmente a alegoria como método de interpretação - sem ela, não se acha Jesus em parte alguma do Antigo Testamento (cf. Diálogo com Trifão e Apologias I e II). Diante de avalanche de interpetações díspares decorrentes da aplicação da alegoria, Ireneu, sem poder negá-la, estabelece o oxímoro: deve-se alegorizar as Escrituras, mas só há uma alegoria certa - a tradição da Igreja. Diante, contudo, do fato de que basta dar língua para Ireneu, que Ireneu não tem mais nada a dizer, Tertuliano agrega, ao sistema, o conceito jurídico-romano de autoridade. ALEGORIA - TRADIÇÃO - AUTORIDADE: aí se resume tudo quanto se pode, em síntese, dizer da História da Interpretação da Bíblia.

5. Mas, não, Zuck - um sonoro "não". Esse sistema não predominou, não senhor, "durante séculos na Idade Média". Zuck quer-me fazer crer que a Reforma mudou o sistema. De fato, na p. 51, quando abre a seção sobre a Reforma, eis o que afirma: "Durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte legítima a nortear a fé e a prática. Os reformadores baseram-se no método literal da escola antioquina e dos vitorinos".¨Ou seja, para Zuck, falar de Justino, Ireneu e Tertuliano não é falar da Reforma - aquela era outra Igreja, aquela que caiu no tradicionalismo, ao passo que, essa, a reformada, a luterana, a protestante, a "sua", não - essa não faz alegoria, não.

6. Não? Então o que eu faço com essa declaração do próprio Zuck? "Mas o estudante da Bíblia, declarou Lutero, precisa ser mais do que um filólogo. Precisa ser iluminado pelo Espírito Santo. Além disso, a abordagem gramatical e a histórica não é um fim em si mesma; seu objetivo é conduzir-nos a Cristo" (p. 52). Ora, Zuck, e desde Diálogo com Trifão que sabemos que isso só pode ser feito por meio da alegoria. Não consegui descobrir a fonte, mas você mesmo registrara que "Justino afirmava que o Antigo Testamento era pertinenete aos cristãos, mas essa pertinência, dizia ele, era percebida por meio da alegorização" (p. 39). Lutero e os protestantes, Zuck, teraim inventado um novo jeito de fazer o Antigo Testamento ser pertinente aos cristãos, de "conduzir-nos a Cristo", como o queria Justino - mas sem alegoria? Naturalmente que não. O princípio hermenêutico evangélico-protestante de "Cristo" como chave de interpretação das Escrituras é, em todos os sentidos, um princípio alegórico. O que cada igreja evangélico-protestante faz, desde Jutino, Ireneu e Tertuliano até hoje, é pôr, na prática - conquanto com a boca o negue - a mesma plataforma político-retórica dos apologistas: ALEGORIA, TRADIÇÃO, AUTORIDADE.

7. Não me surpreende que B. S. Childs considere o método histórico-crítico "insuficiente" (para a Igreja!) e que, em face de sua inserção apologética na "fé", defenda a "canonical approach". Muito menos que um Ausgustus Nicodemus seja mais drástico e categórico, afirmando que o método histórico-crítico é prejudicial à Igreja. O que, contudo, fica evidente, à luz de tais afirmações, é o reconhecimento tácito, para quem quiser ver e ouvir, para quem tiver olhos e ouvidos, que essa Igreja não tem compromisso algum com a História, com a Exegese - somente com a sua própria perspectiva teológico-eclesiástica. A verdade dessas igrejas é a verdade de suas doutrinas - pronto. A Bíblia, aí, não conseguiu ir além de objeto retórico para a manutenção do status quo. Com um agravante - por meio de discursos subreptícios e dissimulados.

8. E, contudo, há razão em seu pavor. Se a alegoria for abandanada, o castelo teológico inteiro se desmonta. O cômico-trágico é ver o desespero de não querer verem o castelo ruir, conquanto não possam - são modernos! - confessar que o que fazem, de manhã à noite, é alegoria sobre alegoria, metáfora sobre metáfora, nuvem sobre núvem, véu sobre véu. O cômico-trágico, aí, não é que façam alegoria - é que o façam, sem, contudo, poderem confessar que o fazem.


Osvaldo Luiz Ribeiro

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

(2008/8) Quase engasguei

1. Meus co-blogueiros do Peroratio, Haroldo e Jimmy, sabem que sou um crítico ácido da tendência "alegórica/metafória" da exegese, seja aquela, antiga, de caráter alegórico-cristológico, seja essa, mais moderna, de caráter metafórico-engajado. Independente de serem ou não úteis ou adequadas a suas respectivas ideologias de base - me causam urticária. Sinto mesmo falta de ar, diante delas. É um problema que tenho de resolver, talvez com alguns exercícios de yoga, não sei.

2. Nesse III Congresso da ABIB, uma cena foi reveladora. Eu esperava com ansiedade a conferência do Dr. André Chevitarese. Durante sua fala, uma frase foi repetida algumas vezes: "exegese é a atualização do passado no presente". A primeira vez que André a leu, eu devo ter dado um salto na cadeira - foi o que Jimmy me disse. Mais tarde, foi-me dito que Haroldo e ele divertiram-se com minha reação: o Osvaldo reclama de todo mundo, dizendo que todo mundo faz metáfora e alegoria, em vez de fazer exegese séria, e então, quando ele vai ouvir aquele que ele acha que, finalmente, vai defender a exegese séria na academia, ouve a defesa do círculo hermenêutico viciado!

3. De fato. Mas as coisas se esclareceram - a expressão "exegese" fora mal empregada. Eventualmente, logo veremos, será substituída. Com efeito, a própria conferência de André denunciava que, como se encontrava, a definição era desmentida pelo próprio exercício que a produzira, já que se tratava de uma tentativa metodológica de reconstrução da história da recepção de uma tradição judaica, a partir da iconografia - história, arqueologia, exegese. Quando Haroldo perguntou a Chevitarese se também as Ciências Humanas nada mais faziam do que atualizar o passado no presente, quem pulou para trás foi ele. E as coisas se esclareceram.

4. Eu devo me conformar. O mundo "bíblico" brasileiro, de um modo geral, não está primeiramente interessado em "exegese" histórico-social. Na maioria das vezes, usa-se um arremedo dela, desde que os resultados sejam adequados aos objetivos de uma panfletagem de missão - seja de direita, seja de esquerda. Que seja. Não é, contudo, aquilo que me interessa. Meu corpo não tolera uma prática dessas, consciente da "encomenda". Não diria que eu consigo fazer exegese hgistórico-crítica à prova de críticas - absolutamente. Mas, quando me indicam que o que eu estou dizendo não cabe no "evento" que procuro ouvir, e se me deixo convencer, envergonho-me de ter-me enganado, e, então, recomeço. Para mim, fazer afirmações que não se sustentam histórico-socialmente é um "crime" teórico-metodológico.

5. Mas foi sintomática a minha reação. No fundo, tenho apostado algumas fichas na aproximação entre a academia e a exegese, entre a História e a Exegese. Logo, logo, se depender de mim, terei migrado para lá. Jamais abandonarei a exegese, e eventualmente continuarei a postular, inconvenientemente, uma teologia pós-metafísica, sem compromissos marcadamente eclesiástico-normativos. Mas o que me anima, agora, é ter a esperança de encontrar um lugar onde se acredite, de fato, em pesquisa.

6. Há algumas toneladas de terra sobre cada uma das páginas da Bíblia. Engana-se quem acha que o Velho Testamento (a Bíblia Hebraica) está mais profundamente soterrada do que o Novo. Penso que a maioria das seguras afirmações que fazemos sobre os textos dessas duas bibliotecas careça de fundamentação situacional - seu "lugar vivencial", se não recuperado, sua condição de evento, se não reconstruída, põe-nos a perder. Minha esperança é que um acordo teórico-metodológico entre História e Exegese ajude-nos a trazer, para cima, porções consideráveis desse passado. Pôr luz nessas trevas. Apagar nossas luzes.

Osvaldo Luiz Ribeiro

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

(2008/7) Científica solidão

1. Devo confessar - foi ainda de dentro dA República, de dentro dA Cidade de Deus, no Castelo Forte, que descobri, entre 1987 e 1990, que a Verdade era um construto epistemológico, e que a Teologia consubstanciava-se na forma de um Mito atualizado - mitos são incontornáveis, mas, suas concretizações, são perigosas.

2. Daí em diante, a Teologia tornou-se imprestável para mim. Passei para/pela Fenomenologia da Religião, ainda acalentando, como ainda acalento, uma Transformação da Teologia. Foram dias de iniciação mística aqueles com Mircea Eliade - uma mística, não um misticismo, racional. Mas, ao fundo, a Velha Mãe, zelosa e ciumenta, amantíssima de mim, me chamando - volta, meu filho, que aqui é seguro e confortável. De fato. Mas só para os que nunca abriram a janela (Matrix).

3. Enquanto subia o Monte Fenomenologia da Religião, descansei sobre um platô a meio caminho - a Epistemologia. Lá, Platão e Aristóteles me disseram o mesmo que Arquivo X - the truth is out there. E, enquanto eu me decidia entre "receber" a Verdade e "descobrir" a Verdade, os românticos do 19 me perguntaram - mas que Verdade? A pressuposição de que, eventualmente, não há a Verdade, e que, de qualquer modo, não há como saber, é uma verdade, não uma Verdade.

4. Continuo subindo a encosta, que Dawkins, a seu modo, chama de Monte Improvável. Ei - a ciência! Talvez ela, quem sabe?, me ajude, me dê chão, me faça a paz, me dê iguais.

5. E, no entanto, Michel Paty se aproxima de mim, cheirando a laboratório, ainda: "a ciência atual, apesar de todos os seus meios, está muito menos segura de si que outrora: não porque 'lhe falte uma alma', mas porque sabe que está condenada ao desconhecido (...) A crise, hoje, seria sobretudo de uma lucidez obrigatória, sabendo que nada, fundamentalmente, logicamente, pode nos ajudar e que, de certo modo, o pensamento está sozinho no mundo; ele não pode evitar doravante assumir esa solidão" (Michel Paty, A Matéria Roubada. São Paulo: EDUSP, p. 32-33).

6. Esquecera-me, sim, esquecera-me, por um lapso de tempo, que Pascal já me dissera, há anos, que o Universo é um peso a me esmagar, e eu, um caniço quebrado - e que, contudo, eu sei disso. A lucidez será saber que isso é tudo que saberei, não importa quão fundo eu cave, tão alto eu voe?

7. E no entanto, minhas unhas são de toupeira cega - eu cavo, e minhas asas, ah, permitam-me, como as daqueles belíssimos anjos que voam, carregando, em si, a marca do maravilhoso.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

(2008/6) Angústia

1. Não é fácil a autonomia. É angustiante. Se creditasse a terceiros o critério da verdade, bastaria recostar-me ao colo e dormitar. As noites seriam tranqüilas, os dias, calmos, a vida, plácida - a verdade, translúcida. E, contudo, uma chispa do fogo de Prometeu caiu em minhas roupas, e incendiou-me corpo e carne - e não há mais noites de sono reconfortantes.

2. Minhas angústias são muitas. Algumas, graves. Terei esolhido devidamente os problemas com que lidar? Escolhidos os problemas com que lidar, estarei eu me aproximando adequadamente deles? Estarei eu selecionando convenientemente os modos de acesso aos problemas?

3. Quando você não escolhe os assuntos da moda, os dos jornais, os das revistas, quando não interessam a você os temas da massa, e você está relativamente só, o que é isso - excentricidade quase patológica ou intuição profunda dos themata de amanhã?

4. Enfiado até o pescoço com teologia, encaro-a adequadamente?, mas contra a corrente majoritária? As massas, excitadíssimas cada vez mais de aleluias e améns; os teólogos, cada vez mais ciosos dos anjos ou das metáforas. E eu, cada vez mais distante, mais inacessível, mas surdo e mudo. Mais só.

5. A epistemologia não é um tema fácil - escolher a plataforma de acesso aos problemas angustiantes. Não encontro - haverá? duvido! - um metaponto, uma metaposição, uma metaperspectiva, desde a qual, mirando o mundo, fique tudo claro. É preciso arriscar, e, tendo arriscado, verificar tudo a partir da escolha epistemológica, já que saber, sentir e querer não se tocam, intercomunicam-se, apenas.

6. Uma vida assim é muito angustiante. Ao final dela, que terá sucedido? Apenas o gotejar inexorável das horas, mas com dor? Ou - sem que eu possa saber, nem ver, nem colher seus frutos, agora - a introdução no seio da terra de alguma semente, cujas raízes e caules não chegarei a ver crescer?

7. Quem pode me dar a resposta?

8. "A solidão é fera, a solidão devora/ É amiga das horas prima irmã do tempo/E faz nossos relógios caminharem lentos/ Causando um descompasso no meu coração (...)/ A solidão dos astros/ A solidão da lua/ A solidão da noite/ A solidão da rua".

Osvaldo Luiz Ribeiro

sábado, 30 de agosto de 2008

(2008/5) De estradas, cidades, leituras e estranhamento

1. É como era antigamente, e eventualmente, ainda o é - em alguns lugares. Você sai de sua cidade, de carro ou trem, e a estrada lambe a terra com uma língua estendida entre serras, curvas, verde e vazio. O tempo passa, passa, sua cidade fica cada vez mais longe, mais longe, até que voltar já é mais custoso do que seguir em frente - e você segue. E você chega.

2. Distante, assim, de sua cidade, cruzando caminhos longos e demorados, você foi vendo a paisagem mudar, as árvores, de cor, de tamanho, as folhas, a cor da terra, a ondulação da paisagem, ora tem morro, ora, não, o céu, azul, de nuvens, azul, sem nuvens, gente, bicicletas, automóveis, carros, trem, passarinhos, pássaros, aves, boi, até galinhas baldias. Lá longe você avista a cidadezinha para onde está indo, e já sente o estranhamento, a curiosidade, a excitação - a alegria, mesmo. Puxa, há oito anos que não tiro férias...

3. Você chega, então, na cidade. Desce do carro. Olha tudo com olhos de primeira vez, cada detalhe, as casas, as cercas, as pessoas, as plantas, os cães, as vendas, as pedras, os postes, as placas, o café, o sol. Nada é igual, tudo é estranho. O Sol é o mesmo, mas não é. Nunca o viu antes. Não esse. Aí.

4. Mas pode ser que nada disso aconteça. Pode ser que você resida em uma metrópole dessas modernas, como Rio de Janeiro, São Paulo, México. Você, então, sai de casa, e, por mais que ande, e ande, e ande, seja a pé, de carro, de trem, de metrô, de ônibus, será sempre a mesma paisagem, as mesmas caras, as mesmas coisas. Nenhum estranhamento - salvo algum medo da violência diária - um gris de viadutos e asfalto cinza.

5. Como um organismo em metástase constante, a cidade espraiou-se, estendeu seu centro em todas as direções, e cobriu tudo - você nem vê mais terra! No seu caminho, a cidade foi engolindo tudo à sua volta - as antigas vilas, os antigos bairros. Engordou, morbidamente. É megalomaníaca. E ainda quer mais, vai comer mais, casa e gente. Nunca mais haverá, aí, estranhamento. Só hábito.

6. Assim é ler. E eu falo, especialmente, de ler textos antigos, particularmente, os da tradição. A Grande Cidade Tradição tem cem mil hectares - só no centro! Engoliu tudo, todos, tempo e textos. Aí, ler é repetir os gestos de todos os dias, as alegrias de todos os dias, as tristezas, também, ver e rever cem vezes a mesma coisa, a mesma idéia, até estar tão gorda delas, que nunca mais verá outra coisa - só ela, a Grande Cidade Tradição.´É como um olho de Dali, saltado da órbita, pendurado por um fio, e voltado para si - só para si.

7. Para ler textos de mil anos, dois mil, três, é preciso sair da cidade, tomar o trem, e dormir, deixar que ele percorra trilhos de séculos, e dormir, e despertar, somente, muito mais tarde, para começar a ver a paisagem mudando, as cores, as coisas, os corpos, as caras. Como fora na primeira viagem, parar, quando lá chegar, e, com entusiasmo, louvar o passado, acariciar-lhe as faces esquecidas - ah, sim, a Tradição não lembra mais nada do passado, porque engoliu-o, como as grandes metrópoles, as vilas. Mas, lá, pulula a vida, verdejam os pastos.

8. É, agora, tendo aí chegado, gastar tempo olhando cada palavra, ops, cada casa, cada fogo de lenha, cada sintaxe, epa, cada festa e batalha, cada idiomatismo, opa, cada costume e cultura. Se, de repente, suspeitar que há alguma coisa de familiar, é sacudir a cabeça, esfregar os olhos, que é ilusão - nossa mente nos pregando uma peça, moradores de metrópoles, nós, especialistas em engolir tudo, de nivelar todos. Não é possível senso de habitualidade, aí - só estranhamento, profundo estranhamento.

9. Não é necessário que queiramos ficar aí. Descobrimos, há pouco, que saímos de dentro de criaturas rastejantes, saltamos para árvores e grutas, e, agora, cá estamos - e quem de nós quer voltar? Igualmente, saber que saímos dessas vilas de milênios, de costumes tão estranhos, de verdades tão suas, de mitos tão distantes, não deve significar querer ficar aí, voltar para aí - significa saber que eles foram o que foram, e que nossa tradição, em nome de poéticas perorações, não pode, é crime!, reduzi-los à nossa imagem - o ogro de Bloch morreria de fome, assim, porque isso não é carne humana, é pó de dupla-morte - morte física, e morte mnemônica. A tradição, ah, quantas vezes não faz dos "moribundos" nossos meros cavalos, rindo-se, porque sabe que, amanhã, os cavalos seremos nós.

10. Deixar a tradição seguir seu rumo - é ela que nos leva a viajar assim, tão atentos, agora, não? Trazer de volta, à vida, carne e corpos enterrados no papel das liturgias. Vozes apagadas, distorcidas, mais que isso, adulteradas, a dizerem o que nunca disseram, a fazer andar por trilhas que nunca abriram pessoas que nunca pretenderam dominar. Libertar-nos. Libertá-los. Ler. Mas fora da cidade Tradição, nos solavancos do trem História e Memória.

Osvaldo Luiz Ribeiro

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

(2008/4) Criação - do simpático, do trágico, e do utópico

1. Acabo de sair de uma Tese de Doutorado sobre Gn 1,1-3, respectivamente, Gn 1,1-2,4a. Ainda vou ficar por muito tempo flutuando sobre o tema. Mesmo que o abandonasse, concluída a tarefa - e não vou, posto que ela mal começou.

2. "Criação" é essa palavra "teológica", que herdamos da tradição cristã, essa, por sua vez, recebendo-a desde uma helenização radical da cultura próximo-oriental, incluída, aí, a judaíta. Quando, hoje, pronunciamos essa palavra, vêm à nossa mente, dançam em nossas retinas, reverberam em nosso córtex, as formações do Universo - as galáxias, as nebulosas, os buracos-negros, os quasares, o Sistema Solar, a Via Láctea, o "globo" da Terra, flutuando no vazio do vácuo sideral. Acima de tudo isso, Deus. O Império do UM. Um Universo. Uma Criação. Um Deus.

3. Aprendi assim desde criança. Aos 18, converti-me à pregação evangélica batista, e, também aí, aprendi assim. Desde 1987, ingressei nos estudos teológicos formais, e, por longos anos, também aprendi - e ensinei - assim. Até que meti-me com Haroldo, aprendi definitivamente Exegese hitórico-social, devorei Fenomenologia da Religião e dediquei-me à leitura histórica dos textos da Bíblia Hebraica. Doutorado.

4. Lá, penso ter descoberto, "criação" não é - em nenhum sentido - nada disso. Criação, lá, é um jeito peculiar de referir-se, por meio do registro mítico e simpático, à organização de espaços civilizatórios, sempre, constituídos, necessariamente, por três elementos: 1) a cidade, que tem de ser construída/reconstruída, 2) o rei, que tem de ser entronizado e estar sobre a Grande Organização, templo/palácio, e 3) o povo, cujo conceito demanda a "criação". Sem cidade, a criação não há, ou acaba. Sem rei, idem. Sem povo, igualmente. Assim é em Israel e Judá, na Mesopotâmia inteira, no Egito, no Crescente Fértil - mais do que isso, na China, na Índia, nas "Américas", na Austrália e Oceania. Em todo canto.

5. Aí, cada deus - e são legiões! - cria/constrói seu próprio território: "os céus e a terra", ou seja, a abóbada civilizatória, a cúpula celeste, a Tenda Azul dos árabes do Saara, e a chapa da terra. Acima, as águas. Abaixo, as águas. Nas águas de cima, de cada terra, de cada cidade, de cada território, de cada povo, o deus desse povo habita seu templo celeste.

6. Gn 1,1-2,4a, eu vi, e disse, não fala do Universo - mas de Judá. "Os céus e a terra", aí, referem-se, apenas, ao conjunto ecológico-sociológico-político (oikumene) de Judá, que, a Pérsia autorizou, foi reconstruído por volta de 515 a.C.

7. As transformações filosóficas da Grécia, somadas às transformações teológicas de judeus-cristãos (também gerados por aquelas primeiras), exerceram um papel de universalização do tema "criação". Tirado de seu contexto, articulado em regime metafísico e ontológico, passou a referir-se a um ato criador único, de um Deus único, da única religião e fé legítimas. Dois mil e quinhentos anos de História soterraram o sentido com que os israelitas e judaítas, bem como seus vizinhos e contemporâneos, operavam o mito da "criação".

8. Na Grécia, chegou-se a um impasse sobre a "criação". No mito de Platão, ela era fundamentalmente "má", no de Aristóteles, fundamentalmente "boa". Para Paulo, herdeiro dessa disputa, ao mesmo tempo que herdeiro das tradições judaítas, a "criação" é boa - conquanto em sofrimento. Hoje, a "criação" quer-se "boa". Mas, concretamente, caímos numa armadilha.

9. De um lado, roubamos, nós cristãos, as "criações" de todos os deuses e povos, e as incorporamos à nossa fé: como igualmente fizemos com sua arte, em nossos museus, e suas riquezas, em nosso cofres. Essa "criação", conforme cremos hoje, é politicamente má e perversa, posto que é usurpação e conquista, violência e assassinato. De outro lado, a Metafísica e a Ontologia operaram em nós um desprezo para com nossa oikumene, e saudades neuróticas de Casa - cujo resultado traduz-se, de certo modo, no desastre ecológico que o planeta inteiro sofre.

10. É preciso, eu penso, primeiro, devolver a todos o que era de cada um - mesmo seus mitos, o direito de articularem-nos, livres. Uma reformulação do mito cristão da criação é urgente - e convém fazê-lo antes que o tribunal da História nos arranque a confissão, por demais tardia, e nos condene, sem sursis. Segundo, é mister que convertamo-nos à oikumene, e que, definitivamente, desconstruamos as idéias metafísicas e ontológicas de "céu". Mesmo a Nova Jerusalém "descia". Mesmo a "criação" gemia, aguardando sua transformação.

11. Se eu estiver minimamente certo, penso que um dos primeiros profetas dessa "nova religião" tenha sido um "diabo" - Nietzsche, pregador da conversão do homem a terra. Nossa casa. A terra de cada um, sua casa. Como diz Edgar Morin, depois de milênios de peregrinação, finalmente chegamos em casa. É hora de um novo mito. É hora de uma nova cosmogonia.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

(2008/3) Creatio ex materia antes de creatio ex nihilo

1. Que Gn 1,1-3 nem de longe fala em creatio ex nihilo (= criação a partir do nada) eu já sabia, Minha Tese de Doutorado vai além dela, mas passa exatamente por essa constatação. Mas, ainda lá, eu considerei que 2 Mac 7,28, ao contrário de Sab 11,17, falava, então pela primeira vez, em creatio ex nihilo. Assim, de um lado, Sab 11,17 (creatio ex materia) consistiria em uma espécie de versão mítico-filosófica (influência helênica) de Gn 1,1-3, ao passo que 2 Mac 7,28, ainda que constituindo, a seu tempo, também uma atualização mítico-filosófica de Gn 1,1-3, transbordara para uma inovação teológica - criação do nada.

2. Deparei-me, contudo, hoje, com um muito interessante artigo: Blake T. OSTLER, Out of Nothing: A History of Creation ex Nihilo in Early Christian Thought, The Farmer Review, n. 17, n. 2, 2005, p. 253-319. Ostler desmonta minha interpretação de 2 Mac 7,28, afirmando que, aí, não se fala de criação do nada, mas desde o "não-ser", uma conceção filosófica que se poderia remontar, segundo ele, a Aristóteles. Na seqüência, depois de analisar uma série de referências do Novo Testamento, do judaísmo rabínico da época neotestamentária, da literatura judaica extra-canônica e da literatura cristã do primeiro e segundo séculos da era cristã, Ostler afirma que "the doctrine of creatio ex nihilo seems to appear rather suddenly about ad 180 in the writings of Tatian and Theophilus in their arguments with Stoics and Middle Platonists" ("a doutrina da criação do nada parece ter aparecido mais seguramente por volta de 180, nos escritos de Tatian e Theophilus, em seus argumentos com estóicos e médio-platonistas" - p. 319).

3. De fato, como igualmente eu afirmara na Tese, 2 Pd 3,5-6 é testemunha de que, ainda tão tarde, cria-se na criação dos céus e da terra a partir da "água", bem como em sua manutenção no meio delas. Ostler analisa também essa passagem e, nesse ponto, além de Sab 11,17, concordamos.

4. Minha posição era de que a doutrina tradicional israelita/judaíta era a da creatio ex materia. Em período helênico, a doutrina teria se dividido - creatio ex materia (tradicional) de um lado, com Sab 11,17, e creatio ex nihilo (inovação), com 2 Mac 7,28. 2 Pd 3,5-6 testemunharia a tradição primitiva.

5. Ostler me força a rever essa posição. 2 Mac 7,28 ainda se situaria na tradição da creatio ex materia. Com isso, desde os primórdios, até 2 Pd 3,5-6, a tradição judaica (e, agora, judaico-cristã) ainda concebe a criação como creatio ex materia. A doutrina da creatio ex nihilo, então, teria surgido em época posterior. Segundo Ostler, no final do século II.

6. Bom material para investigações. Seja como for, saio feliz desse encontro. Parece que eu estava certo - não há nem sombra de creatio ex nihilo em Gn 1,1-3. A única sombra que há lá é a que o Templo de Jerusalém faz, quando o sol, nascendo, tem seus raios interceptados pela "criação"...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(2008/2) Tradução, tradição, traição

1. Como o sentido de uma palavra, num texto, atualiza-se? De onde ela retira sua "alma", sua "substância"? Os dicionários, os léxicos, essas prateleiras de palavras, são como folhas tenras: o herbívoro se aproxima da planta, centenas de folhas tenras, e ele come aquela. Podia ter sido qualquer folha, mas foi aquela. Escritores podem tomar qualquer palavra - mas tomaram "aquela(s)".

2. Mais do que apenas a(s) palavra(s) que ele(s) toma(m), o modo como as arranjam, como "arranjos" de flores. O modo como as tecem. O modo como as relacionam. Anote-se aí mais essa: sintaxe. Semântica e sintaxe são indissociáveis.

3. Mas há mais do que isso. Semântica e sintaxe constituem, digamos assim, o "núcleo duro" da matéria - aquilo com que podemos, mais confortavelmente, lidar. Há, contudo, no texto, algo diferente, sutil. Trata-se do referencial imagético. Textos são manifestações, expressões de consciências. O que vai nos textos esteve, antes, na consciência de seus escritores. Schleiermacher dava a isso substancial importância, mas determinados desenvolvimentos da "hermenêutica" moderna trataram de relativizar esse fundamento héurístico-indiciário. Por isso desgosto muito de certas tradições "hermenêuticas" que se tornaram "populares" no século XX.

4. O que faz com que um escritor escolha essa palavra ou aquela, e que, escolhidas uma certa quantidade delas, as organize assim e assado é sua estratégia de dizer, e dizer o que lhe vai à cabeça - mas, mais do que isso, dizê-lo à luz do quadro referencial que tem em mente. Estão ali, no texto, o quadro referencial (cultural) no qual está inserido o escritor, sua estratégia de comunicação, as palavra que essa estratégia atualizou e a relação necessária entre elas para explicitar aquela estratégia. Perder um desses elementos é desastroso. É, ainda, "leitura", mas, jamais, "reconstrução" - e, por isso, "diálogo".

5. Quando se vai ler, faz-se o mesmo, mas inversamente. Está-se inserido num determinado quadro referencial (cultural), está-se inserido em determinado contexto de "leitura", tem-se acesso a determinados léxicos, a determinados modelos sintáticos. Ler é, incontornavelmente, reunir os quatro elementos que citei, e atualizá-los no texto. Ler sob critérios histórico-sociais, histórico-críticos, é recriar não apenas a semântica e a sintaxe escolhidas pelo escritor, mas, ainda mais importante, sua estratégia de comunicação (análise do discurso) e seu quadro referencial (reconstrução arqueológico-fenomenológica da perspectiva redacional do texto).

6. Um exemplo. Gn 1,2. A expressão eternizada: "sem forma e vazia". As Bíblias do planeta repetem incansavelmente a fórmula "clássica": "inanis et vacua", "without form and void", "wüst und leer", "unsightly and unfurnished", "sin orden y vacía". Para o leitor médio, nada de estranho parecerá encontrar-se aí. Ele, o leitor, e elas, as "fórmulas", "sabem" do que se está falando - o estado do Universo, quando Deus criou o Universo. O referencial cria o sentido.

7. Parece-me, contudo, que não se está dizendo o mesmo que o escritor escreveu. Todas as versões traduzem "tohu wabohu" como adjetivos. São substantivos (disfunção semântica). Todas as versões apelam para a ontologia teológico-filosófica da criação. O Crescente Fértil não opera sob o regime teológico-filosófico, mas mágico-simpático. "Criação", lá - e em Gn 1,2 - não tem absolutamente nada a ver com ontologia teológico-filosófica - trata-se de um regime político-cltural: a emergência da cidade, do governo da cidade, do povo da cidade (disfunção referencial).

8. A força da tradição, contudo, fala mais alto. É preciso uma atitude heurístico-venatória, indiciária, investigativa, crítico-arqueológica, semântico-fenomenológica - nomes difíceis para coisas que qualquer um pode chegar a fazer - para a sua superação. Em que mundo vive esse escritor, e como ele imagina o mundo? Para que ele está escrevendo esse texto? Dada sua estratégia de comunicação, que palavras ele escolheu para descrever o que quer descrever/dizer/fazer fazerem com esse texto? E como relacionou as palavras que escolheu, tanto elas entre si quanto elas com seu quadro referencial (cultural) e sua estratégia de comunicação?

9. Sem fazer essas perguntas, pode-se "ler". Entender, contudo, o que alguém escreveu há séculos atrás, não.


Osvaldo Luiz Ribeiro

sábado, 23 de agosto de 2008

(2008/1) Nós, as palavras e as coisas

1. Em hebraico, davar é tanto "palavra" quanto "coisa". Ao Norte de Israel, também. No Enuma elish, o céu e o nome do céu são o mesmo, a terra firme e o nome da terra firme são o mesmo - a coisa e o nome da coisa são o mesmo. No Éden, 'Adam vai dando nome aos animais. Nenhum nome serviu. Só Havah.

2. Muitas vezes o Sol e a Lua mergulharam no abismo. O céu já não é nome/coisa. Um mago, Peirce, postulou que fora das palavras, as coisas são inacessíveis. Existem para além delas. As palavras, contudo, são como tarrafas que jogamos sobre as coisas, e as tornamos nossas - não tais quais são em si mesmas, mas tais quais se deixam capturar em nossa pescaria.

3. Na direita, as coisas, na esquerda, as palavras. Sopesar. Agüentar o peso de ambas. Viver no mundo - na Terra. Viver no mundo - nas palavras. Ao mesmo tempo. Nossos pés chafurdam na lama e na gramática, pisam no pó e na fonética, brincam na água e na prosódia - e descansam na semântica.

4. Com as palavras, tornamo-nos criadores. Como disse Pascal, criamos o peso do Universo sobre nós, caniços. Criamos a nós mesmos. Os outros. O mundo. Os mundos. Os criadores dos mundos. Nós, coisas vivas, ladrões do fogo das palavras.

5. Que moldam mundos. Dando nomes. Desdando nomes. Num sentido, dando nomes adequados para coisas adequadas. Nomes como acordos entre nossas consciências crítico-empíricas e as coisas. Noutro, infringindo a normalidade, e dando nomes fantásticos a fantásticas criaturas, fazendo-as sair das cavernas feéricas do sonho.

6. Viver que é? Quanto às palavras, manejá-las na dose adequada da lucidez e da noite, da criatividade e da tradição, do rigor e da fantasia, reconhecendo o real e inventando quimeras, fecundando as coisas com nossas palavras, e nossas palavras com as coisas. E calando, quando calar é a maior palavra que podemos exprimir.

Osvaldo Luiz Ribeiro