segunda-feira, 25 de agosto de 2008

(2008/2) Tradução, tradição, traição

1. Como o sentido de uma palavra, num texto, atualiza-se? De onde ela retira sua "alma", sua "substância"? Os dicionários, os léxicos, essas prateleiras de palavras, são como folhas tenras: o herbívoro se aproxima da planta, centenas de folhas tenras, e ele come aquela. Podia ter sido qualquer folha, mas foi aquela. Escritores podem tomar qualquer palavra - mas tomaram "aquela(s)".

2. Mais do que apenas a(s) palavra(s) que ele(s) toma(m), o modo como as arranjam, como "arranjos" de flores. O modo como as tecem. O modo como as relacionam. Anote-se aí mais essa: sintaxe. Semântica e sintaxe são indissociáveis.

3. Mas há mais do que isso. Semântica e sintaxe constituem, digamos assim, o "núcleo duro" da matéria - aquilo com que podemos, mais confortavelmente, lidar. Há, contudo, no texto, algo diferente, sutil. Trata-se do referencial imagético. Textos são manifestações, expressões de consciências. O que vai nos textos esteve, antes, na consciência de seus escritores. Schleiermacher dava a isso substancial importância, mas determinados desenvolvimentos da "hermenêutica" moderna trataram de relativizar esse fundamento héurístico-indiciário. Por isso desgosto muito de certas tradições "hermenêuticas" que se tornaram "populares" no século XX.

4. O que faz com que um escritor escolha essa palavra ou aquela, e que, escolhidas uma certa quantidade delas, as organize assim e assado é sua estratégia de dizer, e dizer o que lhe vai à cabeça - mas, mais do que isso, dizê-lo à luz do quadro referencial que tem em mente. Estão ali, no texto, o quadro referencial (cultural) no qual está inserido o escritor, sua estratégia de comunicação, as palavra que essa estratégia atualizou e a relação necessária entre elas para explicitar aquela estratégia. Perder um desses elementos é desastroso. É, ainda, "leitura", mas, jamais, "reconstrução" - e, por isso, "diálogo".

5. Quando se vai ler, faz-se o mesmo, mas inversamente. Está-se inserido num determinado quadro referencial (cultural), está-se inserido em determinado contexto de "leitura", tem-se acesso a determinados léxicos, a determinados modelos sintáticos. Ler é, incontornavelmente, reunir os quatro elementos que citei, e atualizá-los no texto. Ler sob critérios histórico-sociais, histórico-críticos, é recriar não apenas a semântica e a sintaxe escolhidas pelo escritor, mas, ainda mais importante, sua estratégia de comunicação (análise do discurso) e seu quadro referencial (reconstrução arqueológico-fenomenológica da perspectiva redacional do texto).

6. Um exemplo. Gn 1,2. A expressão eternizada: "sem forma e vazia". As Bíblias do planeta repetem incansavelmente a fórmula "clássica": "inanis et vacua", "without form and void", "wüst und leer", "unsightly and unfurnished", "sin orden y vacía". Para o leitor médio, nada de estranho parecerá encontrar-se aí. Ele, o leitor, e elas, as "fórmulas", "sabem" do que se está falando - o estado do Universo, quando Deus criou o Universo. O referencial cria o sentido.

7. Parece-me, contudo, que não se está dizendo o mesmo que o escritor escreveu. Todas as versões traduzem "tohu wabohu" como adjetivos. São substantivos (disfunção semântica). Todas as versões apelam para a ontologia teológico-filosófica da criação. O Crescente Fértil não opera sob o regime teológico-filosófico, mas mágico-simpático. "Criação", lá - e em Gn 1,2 - não tem absolutamente nada a ver com ontologia teológico-filosófica - trata-se de um regime político-cltural: a emergência da cidade, do governo da cidade, do povo da cidade (disfunção referencial).

8. A força da tradição, contudo, fala mais alto. É preciso uma atitude heurístico-venatória, indiciária, investigativa, crítico-arqueológica, semântico-fenomenológica - nomes difíceis para coisas que qualquer um pode chegar a fazer - para a sua superação. Em que mundo vive esse escritor, e como ele imagina o mundo? Para que ele está escrevendo esse texto? Dada sua estratégia de comunicação, que palavras ele escolheu para descrever o que quer descrever/dizer/fazer fazerem com esse texto? E como relacionou as palavras que escolheu, tanto elas entre si quanto elas com seu quadro referencial (cultural) e sua estratégia de comunicação?

9. Sem fazer essas perguntas, pode-se "ler". Entender, contudo, o que alguém escreveu há séculos atrás, não.


Osvaldo Luiz Ribeiro

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