sábado, 23 de agosto de 2008

(2008/1) Nós, as palavras e as coisas

1. Em hebraico, davar é tanto "palavra" quanto "coisa". Ao Norte de Israel, também. No Enuma elish, o céu e o nome do céu são o mesmo, a terra firme e o nome da terra firme são o mesmo - a coisa e o nome da coisa são o mesmo. No Éden, 'Adam vai dando nome aos animais. Nenhum nome serviu. Só Havah.

2. Muitas vezes o Sol e a Lua mergulharam no abismo. O céu já não é nome/coisa. Um mago, Peirce, postulou que fora das palavras, as coisas são inacessíveis. Existem para além delas. As palavras, contudo, são como tarrafas que jogamos sobre as coisas, e as tornamos nossas - não tais quais são em si mesmas, mas tais quais se deixam capturar em nossa pescaria.

3. Na direita, as coisas, na esquerda, as palavras. Sopesar. Agüentar o peso de ambas. Viver no mundo - na Terra. Viver no mundo - nas palavras. Ao mesmo tempo. Nossos pés chafurdam na lama e na gramática, pisam no pó e na fonética, brincam na água e na prosódia - e descansam na semântica.

4. Com as palavras, tornamo-nos criadores. Como disse Pascal, criamos o peso do Universo sobre nós, caniços. Criamos a nós mesmos. Os outros. O mundo. Os mundos. Os criadores dos mundos. Nós, coisas vivas, ladrões do fogo das palavras.

5. Que moldam mundos. Dando nomes. Desdando nomes. Num sentido, dando nomes adequados para coisas adequadas. Nomes como acordos entre nossas consciências crítico-empíricas e as coisas. Noutro, infringindo a normalidade, e dando nomes fantásticos a fantásticas criaturas, fazendo-as sair das cavernas feéricas do sonho.

6. Viver que é? Quanto às palavras, manejá-las na dose adequada da lucidez e da noite, da criatividade e da tradição, do rigor e da fantasia, reconhecendo o real e inventando quimeras, fecundando as coisas com nossas palavras, e nossas palavras com as coisas. E calando, quando calar é a maior palavra que podemos exprimir.

Osvaldo Luiz Ribeiro

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