sexta-feira, 29 de agosto de 2008

(2008/4) Criação - do simpático, do trágico, e do utópico

1. Acabo de sair de uma Tese de Doutorado sobre Gn 1,1-3, respectivamente, Gn 1,1-2,4a. Ainda vou ficar por muito tempo flutuando sobre o tema. Mesmo que o abandonasse, concluída a tarefa - e não vou, posto que ela mal começou.

2. "Criação" é essa palavra "teológica", que herdamos da tradição cristã, essa, por sua vez, recebendo-a desde uma helenização radical da cultura próximo-oriental, incluída, aí, a judaíta. Quando, hoje, pronunciamos essa palavra, vêm à nossa mente, dançam em nossas retinas, reverberam em nosso córtex, as formações do Universo - as galáxias, as nebulosas, os buracos-negros, os quasares, o Sistema Solar, a Via Láctea, o "globo" da Terra, flutuando no vazio do vácuo sideral. Acima de tudo isso, Deus. O Império do UM. Um Universo. Uma Criação. Um Deus.

3. Aprendi assim desde criança. Aos 18, converti-me à pregação evangélica batista, e, também aí, aprendi assim. Desde 1987, ingressei nos estudos teológicos formais, e, por longos anos, também aprendi - e ensinei - assim. Até que meti-me com Haroldo, aprendi definitivamente Exegese hitórico-social, devorei Fenomenologia da Religião e dediquei-me à leitura histórica dos textos da Bíblia Hebraica. Doutorado.

4. Lá, penso ter descoberto, "criação" não é - em nenhum sentido - nada disso. Criação, lá, é um jeito peculiar de referir-se, por meio do registro mítico e simpático, à organização de espaços civilizatórios, sempre, constituídos, necessariamente, por três elementos: 1) a cidade, que tem de ser construída/reconstruída, 2) o rei, que tem de ser entronizado e estar sobre a Grande Organização, templo/palácio, e 3) o povo, cujo conceito demanda a "criação". Sem cidade, a criação não há, ou acaba. Sem rei, idem. Sem povo, igualmente. Assim é em Israel e Judá, na Mesopotâmia inteira, no Egito, no Crescente Fértil - mais do que isso, na China, na Índia, nas "Américas", na Austrália e Oceania. Em todo canto.

5. Aí, cada deus - e são legiões! - cria/constrói seu próprio território: "os céus e a terra", ou seja, a abóbada civilizatória, a cúpula celeste, a Tenda Azul dos árabes do Saara, e a chapa da terra. Acima, as águas. Abaixo, as águas. Nas águas de cima, de cada terra, de cada cidade, de cada território, de cada povo, o deus desse povo habita seu templo celeste.

6. Gn 1,1-2,4a, eu vi, e disse, não fala do Universo - mas de Judá. "Os céus e a terra", aí, referem-se, apenas, ao conjunto ecológico-sociológico-político (oikumene) de Judá, que, a Pérsia autorizou, foi reconstruído por volta de 515 a.C.

7. As transformações filosóficas da Grécia, somadas às transformações teológicas de judeus-cristãos (também gerados por aquelas primeiras), exerceram um papel de universalização do tema "criação". Tirado de seu contexto, articulado em regime metafísico e ontológico, passou a referir-se a um ato criador único, de um Deus único, da única religião e fé legítimas. Dois mil e quinhentos anos de História soterraram o sentido com que os israelitas e judaítas, bem como seus vizinhos e contemporâneos, operavam o mito da "criação".

8. Na Grécia, chegou-se a um impasse sobre a "criação". No mito de Platão, ela era fundamentalmente "má", no de Aristóteles, fundamentalmente "boa". Para Paulo, herdeiro dessa disputa, ao mesmo tempo que herdeiro das tradições judaítas, a "criação" é boa - conquanto em sofrimento. Hoje, a "criação" quer-se "boa". Mas, concretamente, caímos numa armadilha.

9. De um lado, roubamos, nós cristãos, as "criações" de todos os deuses e povos, e as incorporamos à nossa fé: como igualmente fizemos com sua arte, em nossos museus, e suas riquezas, em nosso cofres. Essa "criação", conforme cremos hoje, é politicamente má e perversa, posto que é usurpação e conquista, violência e assassinato. De outro lado, a Metafísica e a Ontologia operaram em nós um desprezo para com nossa oikumene, e saudades neuróticas de Casa - cujo resultado traduz-se, de certo modo, no desastre ecológico que o planeta inteiro sofre.

10. É preciso, eu penso, primeiro, devolver a todos o que era de cada um - mesmo seus mitos, o direito de articularem-nos, livres. Uma reformulação do mito cristão da criação é urgente - e convém fazê-lo antes que o tribunal da História nos arranque a confissão, por demais tardia, e nos condene, sem sursis. Segundo, é mister que convertamo-nos à oikumene, e que, definitivamente, desconstruamos as idéias metafísicas e ontológicas de "céu". Mesmo a Nova Jerusalém "descia". Mesmo a "criação" gemia, aguardando sua transformação.

11. Se eu estiver minimamente certo, penso que um dos primeiros profetas dessa "nova religião" tenha sido um "diabo" - Nietzsche, pregador da conversão do homem a terra. Nossa casa. A terra de cada um, sua casa. Como diz Edgar Morin, depois de milênios de peregrinação, finalmente chegamos em casa. É hora de um novo mito. É hora de uma nova cosmogonia.

Osvaldo Luiz Ribeiro

Um comentário:

Al disse...

Fantástico... eu digo "Amém"!