quarta-feira, 17 de setembro de 2008

(2008/9) Zuck denuncia Justino, Ireneu e Tertuliano

1. Quando li Zuck afirmar que Justino, Ireneu e Tertuliano, os fundadores do modelo milenar de interpretação cristã das Escrituras, teriam sido, ainda que "sem saber", os responsáveis pela implementação do princípio de tradição e autoridade na História da Igreja, achei que Zuck estava tendo um surto de criticismo, e que se esgarçava sua perspectiva confessional.

2. Roy B. Zuck é autor do livro A Interpretação da Bíblia - meios de descobrir a verdade da Bíblia, publicado pela Edições Vida Nova. Na p. 40, ele declara: "sem saber, esse apologistas (Justino, Ireneu e Tertuliano) acabaram abrindo caminho para que a tradição da igreja ganhasse maior autoridade, e essa perpectiva predominou durante séculos na Idade Média".

3. Bem, Zuck. Sim. E não.

4. Sim. Quando, em seqüência, construíram as bases formais de suas comunidades lidarem com as Escrituras, esses três "apologistas" estabeleceram as bases do modo como TODAS as igrejas, desde então, e acentuadamente após Nicéia, operaram a interpretação bíblica. Justino estabeleceu formalmente a alegoria como método de interpretação - sem ela, não se acha Jesus em parte alguma do Antigo Testamento (cf. Diálogo com Trifão e Apologias I e II). Diante de avalanche de interpetações díspares decorrentes da aplicação da alegoria, Ireneu, sem poder negá-la, estabelece o oxímoro: deve-se alegorizar as Escrituras, mas só há uma alegoria certa - a tradição da Igreja. Diante, contudo, do fato de que basta dar língua para Ireneu, que Ireneu não tem mais nada a dizer, Tertuliano agrega, ao sistema, o conceito jurídico-romano de autoridade. ALEGORIA - TRADIÇÃO - AUTORIDADE: aí se resume tudo quanto se pode, em síntese, dizer da História da Interpretação da Bíblia.

5. Mas, não, Zuck - um sonoro "não". Esse sistema não predominou, não senhor, "durante séculos na Idade Média". Zuck quer-me fazer crer que a Reforma mudou o sistema. De fato, na p. 51, quando abre a seção sobre a Reforma, eis o que afirma: "Durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte legítima a nortear a fé e a prática. Os reformadores baseram-se no método literal da escola antioquina e dos vitorinos".¨Ou seja, para Zuck, falar de Justino, Ireneu e Tertuliano não é falar da Reforma - aquela era outra Igreja, aquela que caiu no tradicionalismo, ao passo que, essa, a reformada, a luterana, a protestante, a "sua", não - essa não faz alegoria, não.

6. Não? Então o que eu faço com essa declaração do próprio Zuck? "Mas o estudante da Bíblia, declarou Lutero, precisa ser mais do que um filólogo. Precisa ser iluminado pelo Espírito Santo. Além disso, a abordagem gramatical e a histórica não é um fim em si mesma; seu objetivo é conduzir-nos a Cristo" (p. 52). Ora, Zuck, e desde Diálogo com Trifão que sabemos que isso só pode ser feito por meio da alegoria. Não consegui descobrir a fonte, mas você mesmo registrara que "Justino afirmava que o Antigo Testamento era pertinenete aos cristãos, mas essa pertinência, dizia ele, era percebida por meio da alegorização" (p. 39). Lutero e os protestantes, Zuck, teraim inventado um novo jeito de fazer o Antigo Testamento ser pertinente aos cristãos, de "conduzir-nos a Cristo", como o queria Justino - mas sem alegoria? Naturalmente que não. O princípio hermenêutico evangélico-protestante de "Cristo" como chave de interpretação das Escrituras é, em todos os sentidos, um princípio alegórico. O que cada igreja evangélico-protestante faz, desde Jutino, Ireneu e Tertuliano até hoje, é pôr, na prática - conquanto com a boca o negue - a mesma plataforma político-retórica dos apologistas: ALEGORIA, TRADIÇÃO, AUTORIDADE.

7. Não me surpreende que B. S. Childs considere o método histórico-crítico "insuficiente" (para a Igreja!) e que, em face de sua inserção apologética na "fé", defenda a "canonical approach". Muito menos que um Ausgustus Nicodemus seja mais drástico e categórico, afirmando que o método histórico-crítico é prejudicial à Igreja. O que, contudo, fica evidente, à luz de tais afirmações, é o reconhecimento tácito, para quem quiser ver e ouvir, para quem tiver olhos e ouvidos, que essa Igreja não tem compromisso algum com a História, com a Exegese - somente com a sua própria perspectiva teológico-eclesiástica. A verdade dessas igrejas é a verdade de suas doutrinas - pronto. A Bíblia, aí, não conseguiu ir além de objeto retórico para a manutenção do status quo. Com um agravante - por meio de discursos subreptícios e dissimulados.

8. E, contudo, há razão em seu pavor. Se a alegoria for abandanada, o castelo teológico inteiro se desmonta. O cômico-trágico é ver o desespero de não querer verem o castelo ruir, conquanto não possam - são modernos! - confessar que o que fazem, de manhã à noite, é alegoria sobre alegoria, metáfora sobre metáfora, nuvem sobre núvem, véu sobre véu. O cômico-trágico, aí, não é que façam alegoria - é que o façam, sem, contudo, poderem confessar que o fazem.


Osvaldo Luiz Ribeiro

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

(2008/8) Quase engasguei

1. Meus co-blogueiros do Peroratio, Haroldo e Jimmy, sabem que sou um crítico ácido da tendência "alegórica/metafória" da exegese, seja aquela, antiga, de caráter alegórico-cristológico, seja essa, mais moderna, de caráter metafórico-engajado. Independente de serem ou não úteis ou adequadas a suas respectivas ideologias de base - me causam urticária. Sinto mesmo falta de ar, diante delas. É um problema que tenho de resolver, talvez com alguns exercícios de yoga, não sei.

2. Nesse III Congresso da ABIB, uma cena foi reveladora. Eu esperava com ansiedade a conferência do Dr. André Chevitarese. Durante sua fala, uma frase foi repetida algumas vezes: "exegese é a atualização do passado no presente". A primeira vez que André a leu, eu devo ter dado um salto na cadeira - foi o que Jimmy me disse. Mais tarde, foi-me dito que Haroldo e ele divertiram-se com minha reação: o Osvaldo reclama de todo mundo, dizendo que todo mundo faz metáfora e alegoria, em vez de fazer exegese séria, e então, quando ele vai ouvir aquele que ele acha que, finalmente, vai defender a exegese séria na academia, ouve a defesa do círculo hermenêutico viciado!

3. De fato. Mas as coisas se esclareceram - a expressão "exegese" fora mal empregada. Eventualmente, logo veremos, será substituída. Com efeito, a própria conferência de André denunciava que, como se encontrava, a definição era desmentida pelo próprio exercício que a produzira, já que se tratava de uma tentativa metodológica de reconstrução da história da recepção de uma tradição judaica, a partir da iconografia - história, arqueologia, exegese. Quando Haroldo perguntou a Chevitarese se também as Ciências Humanas nada mais faziam do que atualizar o passado no presente, quem pulou para trás foi ele. E as coisas se esclareceram.

4. Eu devo me conformar. O mundo "bíblico" brasileiro, de um modo geral, não está primeiramente interessado em "exegese" histórico-social. Na maioria das vezes, usa-se um arremedo dela, desde que os resultados sejam adequados aos objetivos de uma panfletagem de missão - seja de direita, seja de esquerda. Que seja. Não é, contudo, aquilo que me interessa. Meu corpo não tolera uma prática dessas, consciente da "encomenda". Não diria que eu consigo fazer exegese hgistórico-crítica à prova de críticas - absolutamente. Mas, quando me indicam que o que eu estou dizendo não cabe no "evento" que procuro ouvir, e se me deixo convencer, envergonho-me de ter-me enganado, e, então, recomeço. Para mim, fazer afirmações que não se sustentam histórico-socialmente é um "crime" teórico-metodológico.

5. Mas foi sintomática a minha reação. No fundo, tenho apostado algumas fichas na aproximação entre a academia e a exegese, entre a História e a Exegese. Logo, logo, se depender de mim, terei migrado para lá. Jamais abandonarei a exegese, e eventualmente continuarei a postular, inconvenientemente, uma teologia pós-metafísica, sem compromissos marcadamente eclesiástico-normativos. Mas o que me anima, agora, é ter a esperança de encontrar um lugar onde se acredite, de fato, em pesquisa.

6. Há algumas toneladas de terra sobre cada uma das páginas da Bíblia. Engana-se quem acha que o Velho Testamento (a Bíblia Hebraica) está mais profundamente soterrada do que o Novo. Penso que a maioria das seguras afirmações que fazemos sobre os textos dessas duas bibliotecas careça de fundamentação situacional - seu "lugar vivencial", se não recuperado, sua condição de evento, se não reconstruída, põe-nos a perder. Minha esperança é que um acordo teórico-metodológico entre História e Exegese ajude-nos a trazer, para cima, porções consideráveis desse passado. Pôr luz nessas trevas. Apagar nossas luzes.

Osvaldo Luiz Ribeiro

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

(2008/7) Científica solidão

1. Devo confessar - foi ainda de dentro dA República, de dentro dA Cidade de Deus, no Castelo Forte, que descobri, entre 1987 e 1990, que a Verdade era um construto epistemológico, e que a Teologia consubstanciava-se na forma de um Mito atualizado - mitos são incontornáveis, mas, suas concretizações, são perigosas.

2. Daí em diante, a Teologia tornou-se imprestável para mim. Passei para/pela Fenomenologia da Religião, ainda acalentando, como ainda acalento, uma Transformação da Teologia. Foram dias de iniciação mística aqueles com Mircea Eliade - uma mística, não um misticismo, racional. Mas, ao fundo, a Velha Mãe, zelosa e ciumenta, amantíssima de mim, me chamando - volta, meu filho, que aqui é seguro e confortável. De fato. Mas só para os que nunca abriram a janela (Matrix).

3. Enquanto subia o Monte Fenomenologia da Religião, descansei sobre um platô a meio caminho - a Epistemologia. Lá, Platão e Aristóteles me disseram o mesmo que Arquivo X - the truth is out there. E, enquanto eu me decidia entre "receber" a Verdade e "descobrir" a Verdade, os românticos do 19 me perguntaram - mas que Verdade? A pressuposição de que, eventualmente, não há a Verdade, e que, de qualquer modo, não há como saber, é uma verdade, não uma Verdade.

4. Continuo subindo a encosta, que Dawkins, a seu modo, chama de Monte Improvável. Ei - a ciência! Talvez ela, quem sabe?, me ajude, me dê chão, me faça a paz, me dê iguais.

5. E, no entanto, Michel Paty se aproxima de mim, cheirando a laboratório, ainda: "a ciência atual, apesar de todos os seus meios, está muito menos segura de si que outrora: não porque 'lhe falte uma alma', mas porque sabe que está condenada ao desconhecido (...) A crise, hoje, seria sobretudo de uma lucidez obrigatória, sabendo que nada, fundamentalmente, logicamente, pode nos ajudar e que, de certo modo, o pensamento está sozinho no mundo; ele não pode evitar doravante assumir esa solidão" (Michel Paty, A Matéria Roubada. São Paulo: EDUSP, p. 32-33).

6. Esquecera-me, sim, esquecera-me, por um lapso de tempo, que Pascal já me dissera, há anos, que o Universo é um peso a me esmagar, e eu, um caniço quebrado - e que, contudo, eu sei disso. A lucidez será saber que isso é tudo que saberei, não importa quão fundo eu cave, tão alto eu voe?

7. E no entanto, minhas unhas são de toupeira cega - eu cavo, e minhas asas, ah, permitam-me, como as daqueles belíssimos anjos que voam, carregando, em si, a marca do maravilhoso.

Osvaldo Luiz Ribeiro

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

(2008/6) Angústia

1. Não é fácil a autonomia. É angustiante. Se creditasse a terceiros o critério da verdade, bastaria recostar-me ao colo e dormitar. As noites seriam tranqüilas, os dias, calmos, a vida, plácida - a verdade, translúcida. E, contudo, uma chispa do fogo de Prometeu caiu em minhas roupas, e incendiou-me corpo e carne - e não há mais noites de sono reconfortantes.

2. Minhas angústias são muitas. Algumas, graves. Terei esolhido devidamente os problemas com que lidar? Escolhidos os problemas com que lidar, estarei eu me aproximando adequadamente deles? Estarei eu selecionando convenientemente os modos de acesso aos problemas?

3. Quando você não escolhe os assuntos da moda, os dos jornais, os das revistas, quando não interessam a você os temas da massa, e você está relativamente só, o que é isso - excentricidade quase patológica ou intuição profunda dos themata de amanhã?

4. Enfiado até o pescoço com teologia, encaro-a adequadamente?, mas contra a corrente majoritária? As massas, excitadíssimas cada vez mais de aleluias e améns; os teólogos, cada vez mais ciosos dos anjos ou das metáforas. E eu, cada vez mais distante, mais inacessível, mas surdo e mudo. Mais só.

5. A epistemologia não é um tema fácil - escolher a plataforma de acesso aos problemas angustiantes. Não encontro - haverá? duvido! - um metaponto, uma metaposição, uma metaperspectiva, desde a qual, mirando o mundo, fique tudo claro. É preciso arriscar, e, tendo arriscado, verificar tudo a partir da escolha epistemológica, já que saber, sentir e querer não se tocam, intercomunicam-se, apenas.

6. Uma vida assim é muito angustiante. Ao final dela, que terá sucedido? Apenas o gotejar inexorável das horas, mas com dor? Ou - sem que eu possa saber, nem ver, nem colher seus frutos, agora - a introdução no seio da terra de alguma semente, cujas raízes e caules não chegarei a ver crescer?

7. Quem pode me dar a resposta?

8. "A solidão é fera, a solidão devora/ É amiga das horas prima irmã do tempo/E faz nossos relógios caminharem lentos/ Causando um descompasso no meu coração (...)/ A solidão dos astros/ A solidão da lua/ A solidão da noite/ A solidão da rua".

Osvaldo Luiz Ribeiro