1. Quando li Zuck afirmar que Justino, Ireneu e Tertuliano, os fundadores do modelo milenar de interpretação cristã das Escrituras, teriam sido, ainda que "sem saber", os responsáveis pela implementação do princípio de tradição e autoridade na História da Igreja, achei que Zuck estava tendo um surto de criticismo, e que se esgarçava sua perspectiva confessional.
2. Roy B. Zuck é autor do livro A Interpretação da Bíblia - meios de descobrir a verdade da Bíblia, publicado pela Edições Vida Nova. Na p. 40, ele declara: "sem saber, esse apologistas (Justino, Ireneu e Tertuliano) acabaram abrindo caminho para que a tradição da igreja ganhasse maior autoridade, e essa perpectiva predominou durante séculos na Idade Média".
3. Bem, Zuck. Sim. E não.
4. Sim. Quando, em seqüência, construíram as bases formais de suas comunidades lidarem com as Escrituras, esses três "apologistas" estabeleceram as bases do modo como TODAS as igrejas, desde então, e acentuadamente após Nicéia, operaram a interpretação bíblica. Justino estabeleceu formalmente a alegoria como método de interpretação - sem ela, não se acha Jesus em parte alguma do Antigo Testamento (cf. Diálogo com Trifão e Apologias I e II). Diante de avalanche de interpetações díspares decorrentes da aplicação da alegoria, Ireneu, sem poder negá-la, estabelece o oxímoro: deve-se alegorizar as Escrituras, mas só há uma alegoria certa - a tradição da Igreja. Diante, contudo, do fato de que basta dar língua para Ireneu, que Ireneu não tem mais nada a dizer, Tertuliano agrega, ao sistema, o conceito jurídico-romano de autoridade. ALEGORIA - TRADIÇÃO - AUTORIDADE: aí se resume tudo quanto se pode, em síntese, dizer da História da Interpretação da Bíblia.
5. Mas, não, Zuck - um sonoro "não". Esse sistema não predominou, não senhor, "durante séculos na Idade Média". Zuck quer-me fazer crer que a Reforma mudou o sistema. De fato, na p. 51, quando abre a seção sobre a Reforma, eis o que afirma: "Durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte legítima a nortear a fé e a prática. Os reformadores baseram-se no método literal da escola antioquina e dos vitorinos".¨Ou seja, para Zuck, falar de Justino, Ireneu e Tertuliano não é falar da Reforma - aquela era outra Igreja, aquela que caiu no tradicionalismo, ao passo que, essa, a reformada, a luterana, a protestante, a "sua", não - essa não faz alegoria, não.
6. Não? Então o que eu faço com essa declaração do próprio Zuck? "Mas o estudante da Bíblia, declarou Lutero, precisa ser mais do que um filólogo. Precisa ser iluminado pelo Espírito Santo. Além disso, a abordagem gramatical e a histórica não é um fim em si mesma; seu objetivo é conduzir-nos a Cristo" (p. 52). Ora, Zuck, e desde Diálogo com Trifão que sabemos que isso só pode ser feito por meio da alegoria. Não consegui descobrir a fonte, mas você mesmo registrara que "Justino afirmava que o Antigo Testamento era pertinenete aos cristãos, mas essa pertinência, dizia ele, era percebida por meio da alegorização" (p. 39). Lutero e os protestantes, Zuck, teraim inventado um novo jeito de fazer o Antigo Testamento ser pertinente aos cristãos, de "conduzir-nos a Cristo", como o queria Justino - mas sem alegoria? Naturalmente que não. O princípio hermenêutico evangélico-protestante de "Cristo" como chave de interpretação das Escrituras é, em todos os sentidos, um princípio alegórico. O que cada igreja evangélico-protestante faz, desde Jutino, Ireneu e Tertuliano até hoje, é pôr, na prática - conquanto com a boca o negue - a mesma plataforma político-retórica dos apologistas: ALEGORIA, TRADIÇÃO, AUTORIDADE.
7. Não me surpreende que B. S. Childs considere o método histórico-crítico "insuficiente" (para a Igreja!) e que, em face de sua inserção apologética na "fé", defenda a "canonical approach". Muito menos que um Ausgustus Nicodemus seja mais drástico e categórico, afirmando que o método histórico-crítico é prejudicial à Igreja. O que, contudo, fica evidente, à luz de tais afirmações, é o reconhecimento tácito, para quem quiser ver e ouvir, para quem tiver olhos e ouvidos, que essa Igreja não tem compromisso algum com a História, com a Exegese - somente com a sua própria perspectiva teológico-eclesiástica. A verdade dessas igrejas é a verdade de suas doutrinas - pronto. A Bíblia, aí, não conseguiu ir além de objeto retórico para a manutenção do status quo. Com um agravante - por meio de discursos subreptícios e dissimulados.
8. E, contudo, há razão em seu pavor. Se a alegoria for abandanada, o castelo teológico inteiro se desmonta. O cômico-trágico é ver o desespero de não querer verem o castelo ruir, conquanto não possam - são modernos! - confessar que o que fazem, de manhã à noite, é alegoria sobre alegoria, metáfora sobre metáfora, nuvem sobre núvem, véu sobre véu. O cômico-trágico, aí, não é que façam alegoria - é que o façam, sem, contudo, poderem confessar que o fazem.
Osvaldo Luiz Ribeiro
2. Roy B. Zuck é autor do livro A Interpretação da Bíblia - meios de descobrir a verdade da Bíblia, publicado pela Edições Vida Nova. Na p. 40, ele declara: "sem saber, esse apologistas (Justino, Ireneu e Tertuliano) acabaram abrindo caminho para que a tradição da igreja ganhasse maior autoridade, e essa perpectiva predominou durante séculos na Idade Média".
3. Bem, Zuck. Sim. E não.
4. Sim. Quando, em seqüência, construíram as bases formais de suas comunidades lidarem com as Escrituras, esses três "apologistas" estabeleceram as bases do modo como TODAS as igrejas, desde então, e acentuadamente após Nicéia, operaram a interpretação bíblica. Justino estabeleceu formalmente a alegoria como método de interpretação - sem ela, não se acha Jesus em parte alguma do Antigo Testamento (cf. Diálogo com Trifão e Apologias I e II). Diante de avalanche de interpetações díspares decorrentes da aplicação da alegoria, Ireneu, sem poder negá-la, estabelece o oxímoro: deve-se alegorizar as Escrituras, mas só há uma alegoria certa - a tradição da Igreja. Diante, contudo, do fato de que basta dar língua para Ireneu, que Ireneu não tem mais nada a dizer, Tertuliano agrega, ao sistema, o conceito jurídico-romano de autoridade. ALEGORIA - TRADIÇÃO - AUTORIDADE: aí se resume tudo quanto se pode, em síntese, dizer da História da Interpretação da Bíblia.
5. Mas, não, Zuck - um sonoro "não". Esse sistema não predominou, não senhor, "durante séculos na Idade Média". Zuck quer-me fazer crer que a Reforma mudou o sistema. De fato, na p. 51, quando abre a seção sobre a Reforma, eis o que afirma: "Durante a Reforma, a Bíblia passou a ser a única fonte legítima a nortear a fé e a prática. Os reformadores baseram-se no método literal da escola antioquina e dos vitorinos".¨Ou seja, para Zuck, falar de Justino, Ireneu e Tertuliano não é falar da Reforma - aquela era outra Igreja, aquela que caiu no tradicionalismo, ao passo que, essa, a reformada, a luterana, a protestante, a "sua", não - essa não faz alegoria, não.
6. Não? Então o que eu faço com essa declaração do próprio Zuck? "Mas o estudante da Bíblia, declarou Lutero, precisa ser mais do que um filólogo. Precisa ser iluminado pelo Espírito Santo. Além disso, a abordagem gramatical e a histórica não é um fim em si mesma; seu objetivo é conduzir-nos a Cristo" (p. 52). Ora, Zuck, e desde Diálogo com Trifão que sabemos que isso só pode ser feito por meio da alegoria. Não consegui descobrir a fonte, mas você mesmo registrara que "Justino afirmava que o Antigo Testamento era pertinenete aos cristãos, mas essa pertinência, dizia ele, era percebida por meio da alegorização" (p. 39). Lutero e os protestantes, Zuck, teraim inventado um novo jeito de fazer o Antigo Testamento ser pertinente aos cristãos, de "conduzir-nos a Cristo", como o queria Justino - mas sem alegoria? Naturalmente que não. O princípio hermenêutico evangélico-protestante de "Cristo" como chave de interpretação das Escrituras é, em todos os sentidos, um princípio alegórico. O que cada igreja evangélico-protestante faz, desde Jutino, Ireneu e Tertuliano até hoje, é pôr, na prática - conquanto com a boca o negue - a mesma plataforma político-retórica dos apologistas: ALEGORIA, TRADIÇÃO, AUTORIDADE.
7. Não me surpreende que B. S. Childs considere o método histórico-crítico "insuficiente" (para a Igreja!) e que, em face de sua inserção apologética na "fé", defenda a "canonical approach". Muito menos que um Ausgustus Nicodemus seja mais drástico e categórico, afirmando que o método histórico-crítico é prejudicial à Igreja. O que, contudo, fica evidente, à luz de tais afirmações, é o reconhecimento tácito, para quem quiser ver e ouvir, para quem tiver olhos e ouvidos, que essa Igreja não tem compromisso algum com a História, com a Exegese - somente com a sua própria perspectiva teológico-eclesiástica. A verdade dessas igrejas é a verdade de suas doutrinas - pronto. A Bíblia, aí, não conseguiu ir além de objeto retórico para a manutenção do status quo. Com um agravante - por meio de discursos subreptícios e dissimulados.
8. E, contudo, há razão em seu pavor. Se a alegoria for abandanada, o castelo teológico inteiro se desmonta. O cômico-trágico é ver o desespero de não querer verem o castelo ruir, conquanto não possam - são modernos! - confessar que o que fazem, de manhã à noite, é alegoria sobre alegoria, metáfora sobre metáfora, nuvem sobre núvem, véu sobre véu. O cômico-trágico, aí, não é que façam alegoria - é que o façam, sem, contudo, poderem confessar que o fazem.
Osvaldo Luiz Ribeiro